"Tudo começou pelo olhar. Foi nos meus olhos que o amor começou...Eu só tinha aquilo que meus olhos ofereciam: uma imagem. Imagens são criaturas de luz. Foi isto que meus olhos viram, foi isto que amei..." [Rubem Alves]

sábado, 5 de janeiro de 2008

“Pecados Íntimos” (filme)

Estamos sempre tentando preencher os espaços vazios da alma, procurando...procurando sempre...a procura... do amor... de alguém, cada um na sua maneira, mas seja qual for, o vazio está lá para ser preenchido, mesmo quando já amamos alguém...a procura sem fim.
O filme "Pecados Íntimos", é maravilhoso, a reflexão que fica nos pega lá dentro, não tem como não mexer com a gente, vale a pena assistir.

Por: Fabiane Secches

“Pecados Íntimos”, do talentoso Todd Field (de “Entre Quatro Paredes”, 2001), vai aos cinemas para incomodar. Mas, claro, quando se trata do questionador Field, este incômodo vem na melhor acepção da palavra.

O filme recebeu diversas indicações a diversas premiações: não apenas teve o reconhecimento do Globo de Ouro e BAFTA com indicações importantes, mas também do Sindicato das Mulheres Jornalistas da América, da Associação de Críticos de Nova York, de São Francisco e de Washington, assim como da Associação de Críticos Ingleses, além do "Satellite Awards" (premiação da imprensa internacional), entre muitos outros.

À premiação da Academia que se aproxima, o filme chega com três indicações ao Oscar: Melhor Atriz (Kate Winslet), Melhor Ator Coadjuvante (Jackie Earle Haley) e Melhor Roteiro Adaptado (de Todd Field e Tom Perrota, baseado em romance do próprio Perrota).

Embora possa se dizer que o filme escapa do formato cinematográfico tradicional, também é verdade que não é tão revolucionário assim em sua fórmula narrativa: “Pecados Íntimos” tem um inconfundível ar do premiado “Beleza Americana” (1999), do diretor inglês Sam Mendes.

Também há aqui o narrador onisciente em off, trazendo comentários sofisticados sobre os acontecimentos. E há a mesma ironia, o refinado senso de humor (negro), que paira sobre a crítica de costumes à hipocrisia da sociedade norte-americana, representada no filme por uma pacata e arborizada cidade de interior.

Então, ainda que o foco desta vez seja outro, a sua estética inegavelmente tem muito de “Beleza Americana”, e a referência de Field é mais do que apropriada para a história que o diretor deseja nos contar.

“Pecados Íntimos” originalmente se chama “Little Children”. A infeliz tradução para português faz perder uma grande pista sobre o que o filme é. Não, “Little Children” não é sobre os pecados íntimos, é sobre pequenas crianças. Pequenas grandes crianças, aliás.

O filme é essencialmente uma estória sobre pais e filhos. E se de novo poderíamos mencionar Sam Mendes aqui, já que em outro filme - “Estrada para Perdição” (2002) - passou também por este tema, é certo que, desta vez, a comparação (tanto de conteúdo como de forma) seria injusta. Field opta por um caminho completamente diverso, e ainda vai além.

Embora o universo infantil tradicional faça parte de toda narrativa, com playgrounds, brinquedos espalhados, carrinhos sendo empurrados, bebês embalados no colo e constantes referências às crianças de fato, não é sobre essas crianças que o filme deseja falar. Não. “Little Children” é sobre essas crianças grandes que conhecemos bem: os adultos da atual geração.

A sinopse mais detalhada ajuda a compreender: uma das personagens centrais, Sarah Pierce, é belamente interpretada pela inglesa Kate Winslet (do ótimo “Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças”, 2004). Sarah é uma jovem adulta, casada com Richard (Gregg Edelman) e mãe de Lucy, uma linda e geniosa garotinha de três anos. Solitária desde que optou por deixar o trabalho para cuidar da filha, vive um casamento morno. Sarah até tenta se encaixar na vida de uma dona de casa comum, embora não tenha talento para isso. Inteligente e questionadora, sente-se um peixe fora d'água quando vai ao playground da vizinhança com Lucy e tem que conviver com outras mães tradicionais.

O que parece que vai ser apenas uma crítica de costumes ao casamento e à instituição familiar, depois transcende, o que é uma agradável surpresa para o espectador.

Pois bem. Freqüentam este mesmo playground, entre as mães usuais, o pai coruja Brad Adamson (Patrick Wilson, de “O Fantasma da Ópera”, 2004) com seu adorável filho Aaron, o que perturba as mulheres em volta, que suspiram por ele.

Brad é casado com Kathy (a belíssima Jennifer Connelly, de “Uma Mente Brilhante”, 2001) e é ela que ocupa o papel tradicional do homem da casa: enquanto Brad passa o dia solitário brincando com o filho em casa, no playground ou na piscina pública, Kathy passa o dia trabalhando como documentarista e sustenta toda família.

Brad e Sarah acabam por se aproximar e descobrir que entre eles há esse denominador comum, e depois de atraídos um pelo outro, usam a paternidade/maternidade como desculpa para encontros cada vez mais freqüentes.

Nesta mesma tranqüila cidade onde vivem, também está o perturbado Ronnie J. McGorvey (interpretado com talento por Jackie Earle Haley), um ex-prisioneiro que assediava crianças, exibindo-se para elas.

Ronnie vive solitário ao lado de May, sua mãe protetora (Phyllis Somerville), e é naturalmente temido por toda vizinhança. Logo no começo do filme, quando Ronnie é solto e uma reportagem a respeito é realizada na região, uma das mães aflitas diz que tê-lo morando em um local com tantas crianças é como ter um alcoólatra trabalhando em um bar: isso não acabaria bem.

Ronnie então é perseguido por todos, especialmente pelo ex-policial Larry Hedges (Noah Emmerich), o maior inconformado. Depois de ter sido afastado da Polícia após um tiroteio em um shopping que acabou mal, Larry está obcecado pela presença de Ronnie e quer garantir que um homem perigoso como ele jamais tenha paz o suficiente para abordar as crianças do local.

Pronto, o cenário da confusão está armado e “Pecados Íntimos” começa a entrelaçar as histórias e a aprofundar reflexões, com direito a citações de Madame Bovary e tudo o mais. Depois de descobrir que seu marido está envolvido com pornografia na internet, e não muito entusiasmada com seu casamento, Sarah acaba se envolvendo com Brad. Ele, por sua vez, está cansado de ser submisso à esposa e parece gostar de se sentir um homem novamente, e não apenas um pai.

Até aí, tudo bem: conseguimos compreender seus sentimentos e até nos solidarizamos com eles. No entanto, à medida que Field penetra nos relacionamentos, percebemos que não, não é uma bandeira a favor da rebeldia aos costumes, é mais que isso. É um filme sobre a dificuldade de aceitar a vida adulta com todas as suas ocupações e preocupações.

Percebemos que Sarah e Brad não conseguem se conformar com seus novos papéis, mas são completamente resignados quanto a buscar, efetivamente, outros papéis. O caso extraconjugal é o máximo de ousadia que se permitem, e achando que esta atitude desvela não somente o apetite sexual, mas, sobretudo, o apetite de mudança, nós nos surpreendemos, enfim, ao perceber que não passa de uma fuga quase adolescente - e que jamais poderá ir a lugar algum, a menos que eles se tornem, de uma vez, adultos.

Mas não pensem vocês que a mensagem é mastigada para o espectador. Não, não. Field constrói um filme aberto, que permite várias leituras, embora nos conduza todo o tempo através das entrelinhas para esta interpretação final: as pequenas crianças do título não são Lucy e Aaron, são Sarah e Brad, e mesmo Richard e Kathy.

E as pequenas crianças do filme não estão correndo nos parques, ou sendo embaladas nos balanços, ou brincando na piscina... as pequenas crianças do título estão aprisionadas em seus corpos de adultos, como Ronnie, e, talvez por esta razão, ele não consiga se sentir sexualmente atraído por pessoas de sua idade - e aí esteja a verdadeira causa do seu comportamento deturpado.

Admito: esta é a minha livre interpretação sobre Ronnie, e pode ser psicanalítica demais, mas faz todo o sentido se juntarmos as peças do quebra-cabeça que Field nos oferece, uma a uma. Desde o começo do filme, com a tomada da casa de May e Ronnie, com as estátuas de crianças enfeitando a sala, e os muitos relógios que se somam a elas. É o tempo correndo, a vida adulta chamando, mas o desejo da infância que aprisiona. Desejo de proteção, de zelo, de descompromisso e pureza.

Ronnie, do alto de seus cinqüenta anos, nunca lavou uma louça, diz May temendo pelo futuro de seu filho depois que ela morrer. Brad, apesar de ter se formado advogado, nunca é aprovado no exame da ordem e à noite, quando sai para estudar na biblioteca municipal, na verdade nunca chega a entrar. Fica apenas observando os adolescentes fazendo manobras com seus skates. Sarah está decepcionada com o marido, mas nunca busca uma conversa madura com ele e, apesar de fisicamente presente para Lucy, está completamente distante da filha, do seu papel de mãe.

Então Sarah, Brad, Kathy, Richard, Ronnie e Larry são as pequenas crianças. Nunca enfrentam seus problemas reais, sempre buscam alternativas infantis para escapar deles na ilusão de que estão sendo revolucionários. Quando Sarah chora e é consolada pela filha de três anos com um maduro “está tudo bem, mamãe”, os papéis completamente invertidos, a mensagem para mim já estava clara.

O clímax do filme acontece como um despertar. Primeiro, temos a sensação que podemos caminhar para um final trágico, como na referência de Madame Bovary. Então tememos pela vida de Sarah, de Brad e de Lucy. Mas, sem estragar o final do filme, posso assegurar: Field não estava interessado em chocar, ele estava interessado em incomodar. E é essa diferença que na maioria das vezes separa um mau de um bom filme.

Se “Pecados Íntimos” não é impecável, até suas imperfeições parecem ter sido premeditadas, de certo modo, para que o filme não fosse o que o filme não é. Para que a mensagem, ao final, não fosse tão amarradinha e óbvia. Para que o espectador se perdesse algumas vezes dentro da estória, e das subtramas da estória, e tenha a sensação de ter divagado mais do que o preciso, em uma sessão de mais de duas horas no cinema.

Mas sabe de uma coisa? A vida não é exatamente assim? Quando achamos que estamos na direção certa da compreensão e do auto-conhecimento, nós não aprendemos que ainda falta muito para se chegar lá? Em “Pecados Íntimos” acompanhamos a hesitação dos personagens e concordamos com eles algumas vezes, para depois, com uma visão mais ampla da estória, enfim discordar. Percorremos junto com os personagens a evolução dos seus dilemas até chegarmos a máxima que o resume: crescer dá trabalho.

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